A ideia da igualdade de direitos
emergiu na modernidade como o núcleo da vida democrática. Foi a partir dessa
ideia que se criou o espaço das lutas políticas em função de sua efetivação na
configuração das sociedades. Desde a redemocratização após a dissolução da
ditadura militar nós brasileiros temos passado por essa experiência e tomamos
consciência de que há obstáculos enormes em diversos níveis de nossa vida para
o estabelecimento entre nós de uma sociedade que mereça o nome de democrática.
Um desses obstáculos se vincula à nossa cultura política e se pode chamar de "visão
aristocrática da vida”, algo radicalmente contraposto a uma concepção
democrática e ainda fortemente presente em nossa maneira de ver o social,
embora no mais das vezes de forma implícita.
Uma primeira característica dessa
forma de pensar é o que os sociólogos denominam a "naturalização da vida
social”. Trata-se da legitimação da ordem social faticamente existente através
de sua identificação com uma ordem que provém da própria constituição do ser
humano. Nessa ordem não se deve tocar porque o lugar que cada indivíduo ocupa
no todo social lhe é determinado pela ordem natural das coisas que lhe é
transmitida em seu nascimento. Cada um deve querer ser aquilo que ele é por
natureza, deve seguir o caminho que lhe foi traçado desde o nascimento em razão
de sua natureza. Assim, o rico deseja ser rico, o pobre deve desejar ser pobre,
o negro e a mulher não têm porque querer mudar seu lugar no mundo. Somente a
ilusão, a fraqueza da vontade ou a manipulação da consciência explicam o
aparecimento de posturas que não se adéquam a essa situação natural. Isso
significa identificar o faticamente existente com o normativo e em alguns casos
essa identificação ainda aparece justificada por referência a ideias
religiosas, ou seja, é na própria esfera divina que a lei ou o conjunto das
normas encontram sua origem e sua legitimação.
Na visão aristocrática da vida a
experiência do outro é uma experiência de níveis distintos de humanidades: cada
um se encontra num nível determinado na hierarquia dos humanos, Dessa forma, há
uma experiência das diferenças entre os seres humanos que resiste às
semelhanças biológicas e às características comuns do ser pessoal. A humanidade
é vista como uma humanidade naturalmente diferenciada e cada um se deve
contentar com "seu lugar”. Numa palavra, para essa concepção há graus de
humanidade (embora normalmente ninguém tenha coragem de assumir abertamente
semelhante afirmação) e nós certamente tomaríamos um grande susto se
examinássemos com honestidade e rigor nossas palavras e nossos comportamentos
porque iríamos descobrir que falamos e nos comportamos muitas vezes de acordo
com esta concepção do mundo e por isso na realidade nos contrapomos à tese da
igualdade de direitos.
A visão democrática emerge de uma
experiência radicalmente oposta: pode-se dizer que aqui a experiência básica é
a de que o outro é meu semelhante de onde decorre a tese da igualdade básica de
todos os seres humanos e a exigência de configurar a vida de tal modo que esta
igualdade básica se efetive em relações simétricas em todas as esferas da
existência resistindo a todo tipo de ordenação que procure impedir ou limitar
sua efetivação. Na raiz da democracia está a primazia da igualdade o que
implica um combate contra os privilégios que devem neste contexto devem ser
considerados como elemento inaceitável e a luta pela igualdade de direitos.
Quando se assume esta postura, a visão aristocrática perde seu caráter natural
e se revela como fruto de pura convenção que se funda em interesses de
determinados grupos sociais. Essa descoberta do caráter construído da ordem
social, econômica e política traz, como diz o presidente do Observatório de
Desigualdades de Paris, P. Savidan, grandes consequências não só para a
configuração da vida coletiva, mas também para a experiência que o ser humano
faz de sua própria humanidade.
Manfredo Araújo de Oliveira